Vivemos a “crise do fim da história”. Cerca de 30 anos atrás, a classe burguesa afirmou que o capitalismo, após a sua “vitória” sobre os modelos socialistas, que supostamente ruíram, traria uma nova era de democracia, direitos humanos, progresso científico partilhado por toda a humanidade, paz mundial e liberdade sem precedentes.
Porém, era tudo mentira. O que se verifica a partir de meados da década de 1990 é que o modelo econômico neoliberal acentua as desigualdades sociais dentro dos países centrais e periféricos, cria um novo imperialismo a partir da dependência econômica destes últimos relativamente às nações mais desenvolvidas, denomina de “globalização” o fenômeno por meio do qual a colonização cultural impõe modelos de conduta, influencia gostos e dita modas que provêm dos países dominantes, em especial dos EUA e, por fim, as insatisfações sociais fazem emergir novos movimentos de uma esquerda dita progressista (apontada por muitos como “populista”), sem viés revolucionário, bem como organizações neonazistas e neofascistas e o ressurgimento do conservadorismo reacionário.
O suporte cultural que favorece a nova onda de políticos e eleitores de direita, muitos deles jovens e de baixa renda, é proveniente de uma série de elementos presentes nos mais diversos domínios da produção literária e audiovisual, todos apresentando uma ideia explícita ou subjacente de que aqueles que vencem ou que obtêm sucesso são os merecedores, aqueles que trabalharam com afinco ou tiveram astúcia suficiente para alcançar os seus objetivos, de sorte que a “derrota” – é dizer, o simples fato de que uma pessoa não consiga viver da forma como idealizava, não consiga atingir as suas metas ou mesmo não obtenha para si condições dignas de vida – seria um fracasso individual totalmente desvinculado do modelo social vigente.
Outra mentira, portanto. A nossa pobreza, as nossas dificuldades e as nossas carências têm tudo a ver com a circunstância de que vivemos numa sociedade capitalista, que exclui muitos para que poucos tenham o seu lugar garantido.
O discurso da meritocracia envolve a ideia de que alguém ganhou dentro das regras do jogo, ou seja, soube utilizar o regramento a seu favor e sagrou-se vencedor. As forças socialistas não devem combater este discurso com a mera sugestão de políticas que tornem possível às classes oprimidas um melhor desempenho dentro das regras impostas pela classe dominante, mas sim voltar a questionar a existência e a validade destas regras e mesmo a concepção da vida produtiva do trabalhador como um jogo.
Assim, os partidos e organizações socialistas precisam voltar a abordar temas importantes para os trabalhadores em seu cotidiano, tais como o aumento dos salários, a redução dos preços de produtos essenciais, o acesso à habitação, à educação e à saúde.
Como estes temas não são objeto de debate na comunicação social, que prefere dar mais espaço às discussões sobre conceitos econômicos que são abstratos ou de difícil compreensão para a maioria das pessoas (política fiscal, austeridade, dívida pública, etc.) ou polêmicas relativas a grupos identitários, a classe trabalhadora acaba por assimilar a ideia de que os temas relativos às dificuldades do dia a dia, como a insuficiência do salário para fazer frente às despesas domésticas, o desemprego, a escassez de ofertas de habitação a preços acessíveis, a redução das vagas em creches e escolas e a longa espera por um atendimento, por vezes ineficaz, no sistema público de saúde não são pautas políticas.
Este cenário conduz a um quadro chamado “apolitização” - ou seja, grande parte da classe trabalhadora, que não se vê representada pelos movimentos sociais e políticos, passa a acreditar que os seus problemas não se inserem na esfera pública, mas sim na esfera individual, de sorte que os governos e parlamentos não teriam nada a oferecer para melhorar as suas condições de vida.
Num contexto assim, não é de se admirar que cresçam as iniciativas da direita para conduzir todas as pautas políticas para o campo moral, deixando de lado todos os temas ligados às melhorias nas condições de trabalho e nas remunerações, bem como na prestação de serviços públicos.
Os partidos e movimentos de direita dão enfoque a pautas como a suposta ideologia de gênero, afirmam que existem “privilégios” que os grupos historicamente marginalizados buscam por meio das ações afirmativas e dizem que as mudanças de costumes relativas às condutas e escolhas individuais nas áreas afetiva e sexual são o produto de planos traçados por forças ocultas que desejariam a flexibilização de uma moral conservadora, ligada à religião, para que a implementação de uma política de esquerda fosse possível.
Uma vez mais, mentem. Essas iniciativas, que transferem a política exclusivamente para o campo moral, são uma tentativa de evitar que a classe trabalhadora dê atenção aos grupos de esquerda que ainda se esforçam por discutir o que realmente importa, que é o pão na mesa do trabalhador, a moradia digna para todos, serviços públicos de saúde e educação que realmente funcionem, a garantia da segurança dos cidadãos e o fim das opressões.
Entretanto, a direita promove o discurso anticorrupção, que é um dos pilares da sua estratégia, pois é reforçado por setores conservadores que se colocam como paladinos de uma ética que não lhes permitiria figurar entre os “ladrões” do dinheiro público, de modo que se atribui à esquerda um papel duplamente corruptor, nos campos da moralidade social e dos desvios de recursos da receita do Estado. E, apesar de a direita defender a tese de que toda a classe política, no que se inclui o chamado “centro”, deve ser classificada como corrupta, sempre dá o seu jeito de promover os políticos ligados ao conservadorismo como figuras confiáveis do ponto de vista ético.
Assim, a apolitização que se verifica entre a maioria dos trabalhadores é fruto de um plano muito bem articulado, que consiste na propagação das ideias de que a dificuldade financeira do pobre é proveniente de um fracasso individual e de que a falta de acesso a serviços públicos de qualidade, à habitação, à educação e à saúde, bem como o encarecimento dos produtos básicos, não são pautas políticas, sendo que a repugnância à política partidária e representativa, retratada como atividade corrupta e imoral por natureza, reforça o afastamento de amplos setores da população das atividades de coletivos de militância e gera desinteresse por temas relacionados às ações legislativas e governamentais.
Sim, a corrupção é da essência do sistema burguês, mas não devemos desistir da política, pois é justamente isso que a direita quer.