Muito antes que Gödel [matemático austríaco, autor da teoria da incompletude] redigisse seu teorema, Rosa Luxemburgo já havia escrito seu estudo sobre a "acumulação capitalista", no qual sustentava que esse sistema não pode sobreviver sem as economias "não capitalistas": ele só é capaz de avançar seguindo os próprios princípios enquanto existirem "terras virgens" abertas à expansão e à exploração - embora, ao conquistá-Ias e explorá-Ias, ele as prive de sua virgindade pré-capitalista, exaurindo assim as fontes de sua própria alimentação.
Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.
Escrevendo na época do capitalismo ascendente e da conquista territorial, Rosa Luxemburgo não previa nem podia prever que os territórios pré-modernos de continentes exóticos não eram os únicos "hospedeiros" potenciais, dos quais o capitalismo poderia se nutrir para prolongar a própria existência e gerar uma série de períodos de prosperidade.
Em tempos recentes, assistimos a outra demonstração concreta da "lei de Rosa", o famigerado affaire das "hipotecas subprime", que estão na origem da atual recessão: o expediente de fôlego curto, deliberadamente míope, de transformar em devedores indivíduos desprovidos dos requisitos necessários à concessão de um empréstimo. A única coisa que eles inspiravam era a esperança (um tanto astuta, mas vã, em última análise) de que o aumento dos preços das casas, estimulado por uma demanda artificialmente inflada, pudesse garantir, como um círculo que se fecha, que os "compradores de primeira viagem" pagassem os juros regularmente (pelo menos por algum tempo).
Hoje, quase um século depois de Rosa Luxemburgo ter divulgado sua intuição, sabemos que a força do capitalismo está na extraordinária engenhosidade com que busca e descobre novas espécies hospedeiras sempre que as espécies anteriormente exploradas se tornam escassas ou se extinguem. E também no oportunismo e na rapidez, dignos de um vírus, com que se adapta às idiossincrasias de seus novos pastos.
No número de 4 de dezembro de 2008 da New York Books Revíew, no artigo intitulado "The Crisis and What to Do About It", George Soros, brilhante analista econômico e praticante das artes do marketing, apresentava o percurso das aventuras capitalistas como uma sucessão de "bolhas" que, em regra, se expandem muito além de sua capacidade e explodem assim que atingem o limite de resistência. A atual contração do crédito não é um sinal do fim do capitalismo, mas apenas da exaustão de mais um pasto. A busca de novas pastagens terá início imediatamente, alimentada, como no passado, pelo Estado capitalista, por meio da mobilização forçada de recursos públicos (usando os impostos, em lugar do poder de sedução do mercado, agora abalado e temporariamente fora de operação).
Novas "terras virgens" serão encontradas e novos esforços serão feitos para explorá-Ias, por bem ou por mal, até o momento em que sua capacidade de engordar os lucros dos acionistas e as gratificações dos dirigentes for exaurida. Como sempre - conforme aprendemos no século XX, com uma longa série de descobertas matemáticas, de Henri Poincaré a Edward Lorenz -, um passinho para o lado pode levar ao precipício e acabar em catástrofe; o mais minúsculo passo à frente pode desencadear inundações e acabar em dilúvio.
O anúncio de uma nova "descobertà', de uma ilha ainda não assinalada nos mapas, atrai multidões de aventureiros. Eles chegam num número muito maior que o tamanho e a capacidade do território virgem - são batalhões que, num piscar de olhos, terão de voltar a seus barcos para escapar do é desastre iminente, esperando, contra todas as expectativas, que as embarcações ainda estejam lá intactas, no porto.
A grande questão é saber quando se esgotará a lista de terras passíveis de "virginização secundária" e quando as explorações, por mais frenéticas e engenhosas que sejam, deixarão de garantir um alívio temporário. É bastante improvável que os mercados - dominados como estão pela mentalidade líquido-moderna do "caçador", que veio substituir a postura pré-moderna do guarda-caça e sólidomoderna do jardineiro - se preocupem em expressar essas questões. Eles continuarão a viver passando de uma caçada bem-sucedida à outra, enquanto conseguirem desencavar novas chances de adiar a hora da verdade, mesmo que por pouco tempo e a qualquer custo.
A introdução dos cartões de crédito foi um sinal do que viria a seguir. Foram lançados "no mercado" cerca de 30 anos atrás, com o slogan exaustivo e extremamente sedutor de "Não adie a realização do seu desejo". Você deseja alguma coisa, mas não ganha o suficiente para adquiri-Ia? Nos velhos tempos, felizmente passados e esquecidos, era preciso adiar a satisfação (e esse adiamento, segundo um dos pais da sociologia moderna, Max Weber, foi o princípio que tornou possível o advento do capitalismo moderno): apertar o cinto, privar-se de certas alegrias, gastar com prudência e frugalidade, colocar o dinheiro economizado na caderneta de poupança e ter esperança, com cuidado e paciência, de conseguir juntar o suficiente para transformar os sonhos em realidade.
Graças a Deus e à benevolência dos bancos, isso já acabou! Com um cartão de crédito, é possível inverter a ordem dos fatores: desfrute agora e pague depois! Com o cartão de crédito você está livre para administrar sua satisfação, de crédito você está livre para administrar sua satisfação, para obter as coisas quando desejar, não quando ganhar o suficiente para obtê-Ias.
Esta era a promessa, só que ela incluía uma cláusula difícil de decifrar, mas fácil de adivinhar, depois de um momento de reflexão: dizia que todo "depois", cedo ou tarde, se transformará em "agora" - os empréstimos terão que ser pagos; e o pagamento dos empréstimos, contraídos para afastar a espera do desejo e atender prontamente as velhas aspirações, tornará ainda mais difícil satisfazer os novos anseios. Não pensar no "depois" significa, como sempre, acumular problemas.
Quem não se preocupa com o futuro, faz isso por sua própria conta e risco. E certamente pagará um preço pesado. Mais cedo do que tarde, descobre-se que o desagradável "adiamento da satisfação" foi substituído por um curto adiamento da punição - que será realmenté terrível - por tanta pressa. Qualquer um pode ter o prazer quando quiser, mas acelerar sua chegada não torna o gozo desse prazer mais acessível economicamente. Ao fim e ao cabo, a única coisa que podemos adiar é o momento em que nos daremos conta dessa triste verdade.
*Fragmento do primeiro capítulo do livro "Capitalismo Parasitário", escrito pelo autor em 2010.